A Posição do TSE e as Consequências Jurídicas
A política de cotas de gênero nas candidaturas proporcionais representa uma conquista histórica para a democracia brasileira. Por trás dessa norma estão décadas de luta de mulheres que buscaram espaço em um ambiente tradicionalmente dominado por homens. Entretanto, a prática de fraudar essa exigência legal através das chamadas “candidaturas laranjas” tem sido objeto de rigoroso combate pela Justiça Eleitoral, frustrando não apenas a lei, mas os sonhos de representatividade de milhares de brasileiras. Este artigo apresenta um panorama atualizado sobre como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) identifica e pune essas fraudes, com foco especial na recém-aprovada Súmula nº 73, que trouxe novos horizontes para o enfrentamento dessa realidade.
Contexto Legal: O Desafio da Representatividade Feminina
A legislação eleitoral brasileira estabelece que cada partido ou coligação deve preencher o mínimo de 30% e o máximo de 70% das vagas para candidaturas de cada sexo nas eleições proporcionais. Esta norma, prevista no Art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, nasceu do reconhecimento de uma realidade dolorosa: a persistente exclusão feminina dos espaços de poder político.
Nos corredores das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional, a presença feminina continua minoritária, apesar de as mulheres constituírem mais da metade da população brasileira. Esta disparidade não é mero acaso estatístico, mas reflexo de barreiras históricas, culturais e institucionais que dificultam o acesso feminino à política.
Nesse cenário, as cotas surgiram como instrumento de transformação. Contudo, o que se observa frequentemente é a resistência à mudança travestida de aparente cumprimento legal. O registro de candidaturas femininas fictícias, popularmente conhecidas como “candidaturas laranjas”, representa não apenas uma ilegalidade formal, mas a perpetuação de um sistema que nega às mulheres o direito fundamental de representação política efetiva.
Quando uma mulher tem seu nome utilizado como mera formalidade para viabilizar outras candidaturas, sem receber apoio ou condições para uma campanha real, o prejuízo transcende o âmbito jurídico-eleitoral e afeta a própria concepção de cidadania feminina. Cada “candidatura laranja” simboliza uma voz silenciada, uma perspectiva ausente nas decisões que afetam toda a sociedade.
Como o TSE Identifica a Fraude: A Busca pela Verdade Eleitoral
O TSE consolidou na Súmula nº 73, aprovada em maio de 2024, os principais elementos que caracterizam a fraude à cota de gênero. Por trás desse enunciado técnico está o esforço do Judiciário em dar concretude à vontade do legislador e, em última análise, ao princípio constitucional da igualdade.
Segundo o enunciado, a configuração da fraude exige “prova robusta” e demonstração de um ou alguns dos seguintes elementos:
- Votação zerada ou inexpressiva da candidata – Quando uma candidata recebe zero votos ou números irrisórios como 1 ou 2 votos, o sinal de alerta se acende. Afinal, mesmo campanhas modestas costumam mobilizar ao menos familiares e amigos próximos. A ausência quase total de apoio nas urnas frequentemente revela o caráter fictício da candidatura;
- Prestação de contas zerada, padronizada ou sem movimentação financeira relevante – A campanha eleitoral, mesmo a mais simples, demanda recursos. Quando várias candidatas apresentam prestações de contas idênticas entre si, sem individualidade, ou declaram ausência total de gastos, emerge a suspeita de uma candidatura meramente formal. Por trás dos números frios da contabilidade eleitoral, revela-se a ausência de um projeto político genuíno;
- Ausência de atos efetivos de campanha, de divulgação ou promoção de candidatura de terceiros – A vida de uma candidatura real pulsa em comícios, reuniões, panfletagens e na presença digital. Quando esses sinais vitais estão ausentes, ou quando a candidata dedica seu tempo e recursos para promover outros candidatos (frequentemente homens do mesmo partido), evidencia-se a natureza instrumental de seu registro.
Além desses critérios objetivos, o TSE sensibiliza-se para elementos contextuais que narram a história completa por trás das estatísticas eleitorais:
- Vínculos familiares entre candidatas e outros candidatos do mesmo partido, sugerindo a instrumentalização das relações pessoais para fins eleitorais;
- Filiação partidária recente, muitas vezes realizada às pressas, próxima ao prazo final para registro, sem histórico de militância ou engajamento prévio;
- Depoimentos que revelam as entrelinhas da fraude: mulheres que foram convencidas a emprestar seus nomes sem compreender plenamente o significado de uma candidatura, ou que sofreram pressão para participar do esquema apenas para cumprir a cota.
Cada um desses elementos conta parte de uma história de distorção da democracia, de vozes que deveriam ser ouvidas mas foram instrumentalizadas como meros números para viabilizar outras candidaturas.
Consequências Jurídicas: O Preço da Subversão Democrática
Quando comprovada a fraude à cota de gênero, as sanções aplicadas pela Justiça Eleitoral refletem a gravidade do ilícito. Não se trata de mera punição burocrática, mas do reconhecimento de que o desrespeito às cotas compromete a legitimidade do próprio processo democrático.
Para o Partido/Federação:
- Cassação do DRAP (Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários) – Este documento, aparentemente burocrático, representa a chancela de regularidade da participação partidária no pleito. Sua cassação invalida toda a participação da agremiação naquela eleição para o cargo em questão, evidenciando que a fraude contamina todo o projeto político coletivo;
- Nulidade de todos os votos recebidos pelo partido para aquele cargo específico – Cada voto representa a confiança de um cidadão. Quando a fraude é confirmada, essa confiança é traída, e o reconhecimento jurídico dessa ruptura se materializa na anulação dos votos;
- Recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, redistribuindo as vagas entre os demais partidos – Como ondas que se propagam após o impacto, a fraude afeta todo o equilíbrio representativo, exigindo a reconfiguração matemática da distribuição de cadeiras;
- Cassação dos diplomas e mandatos de todos os candidatos eleitos e suplentes do partido, mesmo daqueles que não tiveram participação direta na fraude – Esta consequência, talvez a mais dramática, reflete o entendimento de que a fraude compromete a legitimidade de toda a representação partidária. Histórias políticas são interrompidas, projetos são descontinuados, esperanças são frustradas – tudo porque a base da candidatura estava corrompida desde sua origem.
Para os Responsáveis Diretos:
- Inelegibilidade por 8 anos – Oito anos representam dois ciclos eleitorais completos. É o tempo que a Justiça considera necessário para que aqueles que subverteram o processo democrático sejam afastados da possibilidade de representação popular. Nesse período, carreiras políticas estacionam, ambições são adiadas, e a marca da fraude acompanha o indivíduo em sua trajetória pública e privada.
Essas sanções não são meros dispositivos legais abstratos. Representam vidas políticas interrompidas, projetos partidários frustrados, e, principalmente, o comprometimento da representatividade que as cotas buscavam justamente promover.
O Drama Humano por Trás da Fraude
Por trás das estatísticas e regras jurídicas, existem histórias humanas que raramente são contadas. A mulher que é convencida a se candidatar sem entender as implicações; a militante partidária que recebe promessas de apoio que nunca se materializam; a candidata sincera que se vê sem recursos enquanto as verbas do fundo partidário são distribuídas de forma desproporcional aos candidatos masculinos.
Em muitos casos documentados pela Justiça Eleitoral, mulheres relatam o sentimento de traição ao descobrirem que suas candidaturas eram apenas peças em um jogo para cumprir a lei formalmente. Algumas sequer sabiam que estavam registradas como candidatas, descobrindo apenas ao serem intimadas em processos judiciais anos depois. Outras foram induzidas com falsas promessas de suporte que nunca se concretizaram.
Essas histórias revelam a face humana da fraude à cota de gênero. Não se trata apenas de números e percentuais, mas de direitos fundamentais negados, de vozes silenciadas, de talentos políticos desperdiçados.
Posicionamento da Justiça Eleitoral: Firmeza com Sensibilidade
O TSE tem adotado uma postura de “tolerância zero” em relação à fraude à cota de gênero, reconhecendo que por trás da frieza da lei existe um objetivo humano e social: garantir que todas as perspectivas, experiências e talentos da sociedade possam contribuir para o processo democrático.
A aprovação da Súmula 73 às vésperas das Eleições 2024 representa mais que uma orientação técnica. É um sinal claro de que a Justiça Eleitoral reconhece seu papel transformador na construção de uma democracia verdadeiramente representativa.
É importante destacar que a cassação da chapa inteira afeta todos os candidatos do partido ou federação para aquele cargo específico, mesmo aqueles que não participaram diretamente da fraude. Esta consequência dramática ressalta a natureza coletiva da responsabilidade política e impõe às agremiações partidárias um dever de vigilância e compromisso efetivo com a representatividade de gênero.
Quando um mandato é cassado por fraude à cota, não é apenas um político que perde seu cargo. É uma comunidade inteira que tem sua representação comprometida, são projetos sociais que se interrompem, são esperanças depositadas nas urnas que se frustram. A severidade da sanção reflete, portanto, a gravidade do dano social causado pela fraude.
Boas Práticas para uma Política Inclusiva e Legítima
Para além do cumprimento formal da lei, a verdadeira transformação política requer um compromisso substantivo com a inclusão feminina. Algumas práticas que emergem da experiência política e jurídica brasileira:
- A seleção de candidatas com genuíno interesse e potencial político representa não apenas uma proteção contra questionamentos judiciais, mas uma oportunidade de oxigenação e renovação da política com novas perspectivas e talentos;
- O apoio financeiro e estrutural efetivo às candidatas femininas transcende a exigência legal e manifesta o reconhecimento do valor dessas candidaturas para o fortalecimento democrático. Recursos bem distribuídos significam oportunidades equitativas de comunicação com o eleitorado;
- A documentação adequada dos atos de campanha das candidatas, além de servir como salvaguarda jurídica, registra a jornada política dessas mulheres, validando sua participação no processo democrático e construindo um legado para futuras gerações;
- A movimentação financeira própria e individualizada de cada candidata reflete sua autonomia política e evidencia o caráter genuíno de sua participação no pleito. Por trás dos números da prestação de contas está o reconhecimento do valor e da seriedade de cada projeto político;
- O protagonismo comunicacional das candidatas em suas próprias campanhas, utilizando redes sociais e outros espaços de maneira autônoma, não apenas fortalece juridicamente sua candidatura, mas amplia sua conexão com o eleitorado e potencializa seu projeto político.
Conclusão: Por uma Democracia Verdadeiramente Representativa
A atuação firme da Justiça Eleitoral no combate à fraude à cota de gênero não é mero preciosismo técnico-jurídico. É a defesa de um princípio fundamental da democracia contemporânea: a inclusão de todas as vozes no processo decisório.
Quando pensamos nas consequências da fraude à cota, precisamos olhar além dos efeitos eleitorais imediatos. Cada candidatura fictícia representa uma oportunidade perdida para que perspectivas femininas enriqueçam o debate público; cada vaga artificialmente preenchida simboliza a perpetuação de um sistema que, historicamente, marginalizou as mulheres dos espaços de decisão.
O compromisso genuíno com a promoção da participação feminina transcende o cumprimento formal da lei e se insere no projeto mais amplo de construção de uma sociedade justa e igualitária. Uma democracia onde a diversidade de experiências, visões e talentos encontre expressão nos espaços de poder não é apenas mais legítima – é mais rica, mais criativa e mais capaz de responder aos complexos desafios contemporâneos.
A mensagem que emerge da jurisprudência do TSE é clara: não há democracia plena sem representatividade de gênero. E essa representatividade não pode ser simulada ou fraudada – precisa ser construída com compromisso sincero, apoio efetivo e respeito genuíno à contribuição única que as mulheres trazem para a política brasileira.